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Diferentes percepções de um mesmo modelo educativo

PAIS E PROFESSORES

foto: Josué Gris

Uma parcela de informações sobre a educação brasileira, que diverge dependendo da região em que se localiza, se encontra no espaço da suposição, justamente pela grandiosidade do território e independência dos políticos municipais em decidirem sobre as escolas que estão ao seu alcance. O sistema educacional faz parte das primeiras áreas da organização política que são afetadas durante a troca de mandatos, crises econômicas, políticas, sanitárias, e climáticas. Foi a partir dessas mudanças que a escola Érico Veríssimo, fundada em 1987, implementou o sistema cívico-militar em 2021, estimulado pelo governo de Jair Messias Bolsonaro. A implementação é uma forma de resistir contra as novas perspectivas do sistema de ensino do governo federal atual, que lançou um plano de desincentivo, iniciado em 2023, suspendendo o financiamento desse modelo de instituição. O diretor da escola, Mauro Miguel Viera, reclama sobre a falsa noção da maioria das pessoas sobre o que acontece em sua escola, e enfatiza a falta de apoio da imprensa e dos vereadores do município para fazer o ensino acontecer na cidade de Vicente Dutra.

foto: João Carlos Neto

Alunos da escola Vicente Dutra cantando o hino nacional.

Segundo Mauro, a Érico Veríssimo é baseada erroneamente no estereótipo de que seus alunos seriam “robozinhos doutrinados”, e que determinados veículos de comunicação não entrariam na instituição enquanto ele estiver em seu cargo. A justificativa é que, para os veículos, interessa mais fazer a cobertura de “um cadáver morto”, do que fazer a de seus estudantes em formação. Nesse sentido, nos propomos a entender o que acontece no prédio, tanto com os alunos, quanto com os funcionários, e o que familiares pensam a respeito. As mesmas palavras utilizadas pelo diretor, quanto a noção de “robozinhos”, foram utilizadas pelas professoras Suzana Konflaz e Daiane Tomazi, em entrevistas separadas. Segundo as funcionárias, as matérias ofertadas pela escola não mudaram e o diferencial é somente a Ordem Unida, momento em que os alunos aprendem sobre disciplina, civismo, hino nacional, postura de marcha e “outras regras para escola cívico-militar”.

A professora de educação física, Daiane Tomazi, diz que a organização das crianças mudou quase 100%, elas “têm aprendido mais” depois da instalação do modelo, “possuem mais concentração”, sabem fazer fila, além disso, o respeito aumentou, por conta do grau de comprometimento que a escola impõe. Mauro reforça também essa responsabilidade. O diretor deixou claro que as faltas são “inadmissíveis”, os cabelos têm que ser curtos - e presos em rabo de cavalo para as meninas -, piercings não são permitidos, além da exigência do uniforme esportivo e social. Esses uniformes parecem ser uma grande questão para os funcionários. Todos os abordados mencionam a elegância dos pequenos quando estão fardados, com casquetes, camisas e sapatos, itens fornecidos pelo governo municipal. Para o diretor, o “pelotão”, nome utilizado para se referir às crianças, precisa ser disciplinado quanto a excelência das roupas na escola. Além do visual elegante, são um show à parte quando utilizados no momento do hino e da reza – outros assuntos levados bem a sério pela escola.

Vanusa Gonçalves, mãe de uma aluna e docente, diz que “tem que respeitar todas as religiões” quando questionada se os estudantes aprendem sobre religião, apesar de termos encontrado muitos símbolos religiosos nos corredores e nas salas que remetem apenas às comunidades católicas e evangélicas, além de presenciarmos somente reza do Pai Nosso sendo proferida por todos alunos da escola enfileirados durante o início das aulas na segunda de manhã. A predominância das religiões cristãs na escola reflete a situação do município. De acordo com os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), mais de 78% dos residentes de Vicente Dutra em 2010 eram católicos apostólicos romanos.

A instituição possui, segundo os funcionários, uma biblioteca bem qualificada, laboratório de informática em reforma, consultório odontológico, refeitório, e um grande pátio para o desenvolvimento dos pequenos. Vanusa esbanja seu orgulho em fazer parte da instituição, relata que a primeira vez que ouviu cantarem o hino em formação acabou chorando. Para a professora, a melhora de sua filha é notável, agora ela ajuda mais nas atividades de casa, apruma sua farda, sorri mais e não sofre com os desafios do bullying. Vanusa lamenta a falta de investimento do governo federal atual, conforme sua entrevista “esse governo que tá agora não quer investir em militar”, e reforça que gostaria de ter estudado em uma escola como essa em que trabalha. A professora ainda diz que a direção sempre auxilia nas intempéries, informação também confirmada por Mauro. O diretor atua, junto a um grupo de pessoas, contra a vulnerabilidade social de algumas crianças do município, segundo ele, “vão na casa” e procuram saber o que está acontecendo.

imagem: Heloisa Gamero

Pôster católico colocado em parede da instituição.

Daiane Tomazi também nos relata a preocupação com os alunos. Conforme a sua entrevista, a aproximação dos discentes é muito natural, “eles vêm, eles procuram, eles conversam”. Ela possui consciência que a realidade de alguns não é nada fácil, principalmente por serem de uma cidade predominantemente rural, atravessada por rio e que sofre atualmente com as grandes tempestades de chuva e vento. À procura de saber como é a percepção dos pais, encontramos um familiar disposto a dar entrevista - a identidade será respeitada nesse texto. A imagem da instituição, construída pelos colaboradores, se distancia levemente da visão desta entrevista. Segundo o parente, “não querem saber o que está acontecendo em casa”, “há uma distância muito grande entre aluno e professor”, e ainda relata que proíbem os alunos de ficarem falando ou perguntando qualquer coisa, as instruções são para que falem somente o necessário.

 

É claro que, em um ensino cívico-militar, a disciplina é exigida dos alunos, como dito pelos colaboradores entrevistados. Entretanto, eles mesmo reforçam que a escola não é um quartel, mas um espaço onde os estudantes possuem horários bem definidos e rotina de aprendizado sobre postura, hino e marcha. As disciplinas são como as de uma escola “normal”. Apesar de concordar com as matérias ofertadas, e as cobranças acadêmicas, até parabenizando a instituição, o familiar ainda se preocupa com a inibição das crianças, reclama das “gritarias”, e do convívio agressivo em situações de alunos indisciplinados, ou que não conseguem acompanhar o ritmo do ensino. Há o relato de que, por conta da rigidez disciplinar da escola, as crianças e adolescentes muitas vezes voltam para casa agressivos, e chateados com as brigas.

 

Além disso, a eficiência do transporte escolar também foi questionada. O familiar reforça que a escola não foi escolhida, era a única unidade de ensino que fornecia o ônibus, e como mora distante do perímetro urbano, a solução era apenas a Érico Veríssimo. Segundo o parente, para cumprir horário em dias de chuva em que a estrada está enlameada, acabam deixando alunos para trás, e estes perdem o dia letivo por conta da rigidez do cronograma. O familiar esclarece que, em sua percepção, para a escola ter a educação de qualidade tem que ser desde os funcionários, o local, o transporte, a merenda, até o convívio. Para ele, falam muito sobre criar cidadãos de respeito, de caráter, mas acabam esquecendo de motivar os alunos para isso, dando o exemplo. Ainda, em sua entrevista, ressalta que o ensino tem que ser acolhedor, sem inibição dos pequenos, e moldando o ensino, de forma mais paciente para aqueles que possuem mais dificuldade em aprender.

 

Uma grande diferença da escola quanto às outras públicas é a presença do tenente Vilmar Bueno e do sargento Rogério Kurek no ambiente escolar dos alunos. Para o diretor, a “sociedade está perdendo os valores éticos, morais, educacionais e religiosos” ainda, segundo a professora Daiane, “A gente vem de uma geração que tá precisando de limites, (...) as crianças perderam o respeito”. O modelo cívico-militar veio, nesse sentido, a fim de solucionar essas questões. Entendemos que, a partir dessa percepção, da necessidade de disciplina, surgiu a figura dos militares, conhecidos na região pela imagem de segurança. Frente aos problemas enfrentados nos últimos anos, como a pandemia, os ataques brutais às unidades de ensino, o combate às drogas (mencionado pela professora de educação física), a necessidade de proteção cresceu, e consequentemente, aumentou o número de pais procurando a Érico Veríssimo para matricular seus filhos.

De acordo com Mauro, o sargento Rogério e o tenente Vilmar são militares aposentados, que passaram por um processo de reciclagem para atuar na instituição como monitores, e possuem uma sala reservada, separada das professoras, ao lado do escritório do diretor, e das bandeiras. A sala é composta por uma parte de vidro, provendo bastante visibilidade ao local onde as crianças circulam em seus uniformes, com as mãos para trás. O diretor reclama da pouca procura da parte dos militares em atuar na escola, por conta do baixo salário oferecido pelo estado. Segundo o Portal de Transparência do município, Rogério consta na folha de pagamento, mas não foi encontrado o nome de Vilmar. Para o diretor e Daiane, os monitores possuem uma relação muito boa com as crianças, conversam bastante com os alunos. Mauro adiciona que o tenente “tem didática muito boa para trabalhar com crianças”, apesar de seu antigo trabalho nas ruas ser “pouco educativo”. Segundo ele, o carisma dos militares faz parecer que “são mais professores que nós [professores da escola]”.

Por não possuírem nenhuma formação pedagógica, os monitores não podem, teoricamente, interferirem na formação educacional das crianças. Possuem o papel de contribuir com as atividades, e zelar pelos cuidados e segurança dos alunos. Para o diretor Mauro, a função deles é deixar “uma sementinha a mais”, sendo influência para os estudantes  sobre as possibilidades de uma carreira militar. Na perspectiva do familiar, o serviço de zelo fornecido pelo sargento e tenente não é executado da maneira que foi dito pelos funcionários. Segundo ele, se gastou muito dinheiro, a partir de um projeto político pessoal do prefeito, e os monitores não dão a atenção necessária para as crianças, ficam em sua sala ocupados com outros afazeres que não são de interesse escolar. Isso preocupa famílias, pois as crianças ficam misturadas entre 1º e 9º ano, sem fiscalização.

 

Alguns pais acabaram retirando seus filhos da escola quando o projeto cívico-militar deu andamento. Conforme dito pela professora Daiane, foram mais ou menos 2 ou 3 casos, e adiciona que foram situações em que o parente “não teve maturidade”, a escola foi vista como uma jogada política e o pai e a mãe não souberam pôr limite nos filhos. Fica evidente, desse modo, a contradição nas falas de todos entrevistados, e percepções diferentes acerca do modelo cívico-militar e da conduta exercida pela escola Érico Veríssimo. O que reflete o posicionamentos diversos em todo Brasil acerca dos melhores modelos de ensino para crianças e adolescentes.

Professora Daiane Tomazi durante entrevista, na sala dos professores da Érico Veríssimo, em Vicente Dutra (RS).

imagem: Josué Gris

O objetivo desta seção da reportagem é demonstrar os diferentes entendimentos dos serviços oferecidos por um modelo de ensino que já não é mais estimulado pelo governo federal, mas que resiste para permanecer no território nacional, sendo uma luta política de prefeitos que procuram alternativas de investimento para alimentar escolas como a de Vicente Dutra. É compreensível a necessidade de instituições de ensino dignas, seguras e que provêm soluções para as carências dos alunos que estão em um grau de vulnerabilidade social. Entretanto, a reportagem propõe uma reflexão se a única alternativa é a rigidez do civismo e militarismo nos colégios. Como relatado pelo familiar, as crianças podem adquirir um comportamento enraivecido a partir dos métodos disciplinares rígidos. É indubitável os benefícios de deixar os pequenos se portarem como crianças, sem ajustes rigorosos de postura e comunicação com os funcionários. Além do acompanhamento do aprendizado cuidadoso, que leva em consideração o processo de compreensão de cada aluno, e a não padronização da religião dentro do perímetro escolar, que desconsidera outras manifestações religiosas.

É importante finalizar ressaltando que, em muitos momentos, a discussão acerca das escolas cívicas-militares não acontece, a implementação se dá sem a consulta da sociedade e do Congresso Nacional. Nesse sentido, acaba interferindo na gestão do ensino com base apenas em convicções pessoais dos governadores e prefeitos, sem levar em consideração as regras da Constituição sobre os princípios básicos da educação brasileira. O que observamos em Vicente Dutra é um exemplo de instituição sem aporte das diretrizes que respeitam a singularidade dos indivíduos e a capacidade destes de se manifestarem livremente no perímetro escolar.

*escrito por HELOISA GAMERO

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