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PAZ SEM VOZ É MEDO

foto: João Carlos Neto

Ao aderir à gestão compartilhada as escolas cívico-militares aproximam-se de uma educação que mais aprisiona do que liberta

Nos últimos meses de dois mil e vinte e três, o Rio Grande do Sul havia enfrentado fortes chuvas, tempestades e alagamentos em decorrência das mudanças climáticas, intensificadas pelo El Niño, situação que inviabilizou as aulas em diversos períodos na Escola Cívico-Militar Érico Veríssimo, naquele fim de ano.

Na primeira visita, à espera de uma entrevista com o diretor Mauro Miguel Viera, que concordou em nos receber, encontramos em Vicente Dutra uma escola sem luz, nem alunos. Um vendaval no início daquela semana deixou a cidade próxima das margens do Rio Uruguai sem acesso à energia e água por um longo período de tempo, o que nos levou a adiar o primeiro contato com um modelo de gestão escolar – e quiçá ensino – inspirado nas iniciativas do Governo Bolsonaro.

O Pecim (Programa Nacional de Escolas Cívico-Militares) foi encerrado em 2023 pelo Governo Lula, com a justificativa de “desvio de finalidade das atividades das Forças Armadas”, como mostra o UOL, a partir de nota técnica do MEC, panorama que remete à inconstitucionalidade desse modelo educacional. Em Vicente Dutra, porém, as aspirações dessa maneira diferenciada de conduzir uma escola continuam.

Na segunda visita, quando retornamos à Escola Cívico-Militar Érico Veríssimo, fomos recebidos com olhares curiosos dos alunos do 1º ao 9º ano. Para eles, nossa presença significava visitas estranhas, com equipamentos esquisitos. Logo nos primeiros minutos, nos deparamos com o que aquela escola, em particular, mantinha como um de seus diferenciais, na opinião dos pais, educadores e militares. Com os braços rente ao corpo, imóveis, as crianças ouviam atentamente a fala de Mauro Viera, o diretor. Em breve fariam uma oração, e depois, cantariam o hino.

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foto: João Carlos Neto

Alunos do quinto ao nono ano da Escola Cívico-Militar Érico Veríssimo aguardam o momento de cantar o hino e fazer a oração.

“E hoje a nossa sociedade tá corrompida, hoje a sociedade tá perdendo seus valores éticos, morais, educacionais, religiosos, e a escola tenta resgatar isso”. Dessa vez, muito bem recebidos pelo diretor, era essa uma das frases mais marcantes no início da nossa conversa. Também, poder afirmar que até os alunos da primeira série haviam decorado os hinos mais importantes, como ele disse, era motivo de orgulho para a escola.

Víamos como uma oportunidade diferente o fato de pisar em uma escola cívico-militar. Tínhamos tido contato, em setembro, com a professora associada da Universidade de Brasília e coordenadora da Rede Nacional de Pesquisa sobre Militarização da Educação (REPME), Catarina de Almeida Santos. Muito contrária ao processo que foi responsável por trazer militares para dentro das escolas públicas brasileiras, Catarina Santos havia nos emprestado seu olhar crítico, e caminhávamos pela estrutura da Escola Cívico-Militar Érico Veríssimo atentos à possíveis fraturas no discurso dos funcionários que, na visão deles, estavam resgatando valores cada vez mais escassos em uma sociedade em vias de corromper-se.

Quando estava no papel de aluna, a professora Daiane Tomazi, que leciona Educação Física na Érico Veríssimo, via o professor como uma figura de autoridade. Relembrando suas experiências, brinca que muitas vezes nem piscava dentro da sala de aula, em respeito ao professor.

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A célebre frase do educador brasileiro Paulo Freire não poderia estar mais presente no contexto da militarização das escolas públicas brasileiras: “quando a educação não é libertadora, o sonho do oprimido é ser o opressor”. É difícil mapear com exatidão todas as crises pelas quais o sistema educacional passou, principalmente em decorrência dos constantes ataques que sofreu desde sua implementação, nas primeiras décadas do século passado, quando passou a ser considerada, constitucionalmente, um direito de todos.

Ao conversar com a pesquisadora Catarina de Almeida Santos, questionamos se as jornadas de 2013, período em que o movimento Escola sem partido apareceu com maior força no cenário nacional, teria sido o início de uma crise que culminaria nas escolas cívico-militares. Assusta-nos conectar os pontos e questionar se isso pode ser o que deu confiança a certas alas do Governo de Jair Bolsonaro, para que uma escola supostamente sem ideologia pudesse ser implementada. Parte do nosso assombro deve-se ao fato de que, como disse a pesquisadora Catarina de Almeida Santos, o modelo educacional dos militares – esse que aos poucos apareceu com mais força no cenário nacional, com as escolas cívico-militares – é o único que efetivamente admite ser composto por doutrinações. 

Mais do que apontar o maior culpado, porém, é interessante entender a proporção da escola pública no Brasil, e o que aconteceria uma vez que os ideais de uma educação libertadora pudessem tomar forma. “O ataque à escola pública tem a dimensão do potencial que ela tem [...] Se essa escola pública funciona, a gente estremece a estrutura desse país.” Catarina Santos lembra o peso dos números, já que em um país com mais de 200 milhões de habitantes, quase 40 milhões compõem as salas de aula brasileiras do sistema educativo público, somente na educação básica. “O sistema educativo brasileiro é maior do que a população de qualquer país da América do Sul”, nos contou a pesquisadora.

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“O ataque à escola pública tem a dimensão do potencial que ela tem [...] Se essa escola pública funciona, a gente estremece a estrutura desse país.”

Espera-se que um sistema educacional dessas proporções consiga representar o que um país concentra de melhor. Com o Brasil, talvez não seja o caso, pelo menos se considerarmos os constantes ataques sofridos. O que para Catarina é considerado um dos princípios mais básicos de uma educação que nutre a subjetividade dos sujeitos, por exemplo, não é encontrado nas escolas cívico-militares – modelo que segundo ela significa mais um desses ataques à educação pública, de qualidade e para todos: “O princípio da educação é [a] liberdade de ensinar e aprender, multiplicidade de escolhas pedagógicas, gestão democrática [...] o quartel é o inverso.”

A premissa de que escolas cívico-militares são erguidas sob a perspectiva do militarismo, no entanto, foi negada com frequência durante nossa visita à Érico Veríssimo. “As pessoas nem sabe o que falam”, respondia o diretor. Mauro Viera mencionou que já havia sido questionado outras vezes sobre a capacidade da escola que coordena transformar os alunos em “robozinhos, doutrinados”. “A escola cívico-militar não é o militarismo na escola”, disse ele.

Mauro Miguel Viera, diretor da Escola Cívico-Militar Érico Veríssimo, localizada em Vicente Dutra - RS.

foto: João Carlos Neto

Vale lembrar que o argumento das escolas cívico-militares sustenta-se pelo quesito do combate à vulnerabilidade social, associado à segurança e o retorno de valores considerados perdidos na sociedade – como vimos através do diretor Mauro Viera – entre outros. A gestão desse modelo educacional é apenas compartilhada, situação na qual o currículo escolar não sofre alterações, e os militares deveriam, em tese, não exercer influência no aprendizado dos alunos. Estranha-nos perceber que apesar da insistência em negar a influência dos aspectos mais negativos associado aos militares, as escolas que aderiram ao Pecim, ou então buscam seguir o modelo – mesmo que não haja o mesmo tipo de financiamento, como é o caso do exemplo em Vicente Dutra – ainda contam com uma disciplina denominada “Ordem Unida”.

O diretor Mauro Viera explica que a disciplina mencionada não contempla o currículo, mas é nela que “eles aprendem toda essa questão do civismo, da postura, de cantar o hino, de entender o hino”. Diante disso, resta-nos questionar se a abordagem não remete à disciplina “Moral e Cívica”, implementada no currículo escolar das escolas públicas pelo regime ditatorial brasileiro, que manteve-se ativa de 1969 até 1993, até ser extinta pelo presidente Itamar Franco, ao considerá-la não condizente com um regime democrático

No final da última visita à Escola Cívico-Militar Érico Veríssimo, fomos levados, de sala em sala, a conhecer o ambiente em que as aulas acontecem. Oitavo ano, primeiro ano, quinto ano, sexto ano. Cada vez que o diretor abria a porta, o aluno responsável por organizar a sala naquela semana, nos recebia de acordo com a norma da escola. Um pedido de atenção aos demais alunos, e a sequência de ordem de caráter militar: “Sentido. Descansar. À vontade”. Antes de sairmos de algumas salas, a pergunta do diretor que se repetia, em resposta aos estudantes de jornalismo que ali estavam. Perguntava ele, “Vocês gostam de estudar nessa escola? O tenente é uma pessoa boa ou não?”.

Na visão da pesquisadora e professora associada da Universidade de Brasília, Catarina de Almeida Santos, incorporar no sistema educacional valores e métodos provenientes do âmbito militar significa adestrar corpos e mentes, por meio de palavras de ordem, por exemplo. A pesquisadora relembra que nos quartéis, só é possível treinar soldados por processos que remetem ao apagamento dos sujeitos. Dessa forma, por meio da doutrinação, ninguém seria capaz de questionar qualquer ordem dada, por mais absurda que seja.

Na visita à Érico Veríssimo, não encontramos tamanha brutalização dos alunos. Mas hora ou outra, é possível notar detalhes em demandas comportamentais que mais tarde levarão alguns alunos a sonhar com o sistema militar, principalmente os mais vulneráveis. Entre as afirmações do diretor Mauro Viera, sobre aqueles alunos “meio perdidos”, que teriam no militarismo um norte, ouvimos também a expectativa em poder cativar com mais facilidade os alunos mais novos, enquanto os mais velhos representam um desafio maior na implementação dos ideais da escola cívico-militar.

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No quesito liberdades de escolha e desenvolvimento do sujeito, premissas básicas de uma educação de qualidade, é impossível esquecer a constante imposição de padrões de aparência que permeiam escolas como a Érico Veríssimo. E do ponto de vista local, ao ouvir funcionários, é como se fossem errados justamente aqueles que questionam essas regras. “O cabelo tem que ser curto. Não pode usar piercing, brinquinho. Os meninos não podem ter aquele corte desenhado no cabelo, é regra”. Para a professora Daiane Tomazi, a atitude de alguns pais que retiraram os filhos da instituição está relacionada a modos de pensar em que seriam incapazes de entender os reais motivos dessas regras. Em suas palavras, alguns percebem o militarismo como um movimento político: “Acho que os filhos acabaram perdendo”.

De todo modo, em nossa breve passagem pela escola cívico-militar, o que ficou foram as contradições. Acerca dos costumes, Catarina Santos apontou o caráter excludente desse modelo. “Se o cabelo não cabe na boina”, disse ela, “você não cabe na escola”. Situação que remete, principalmente, ao cabelo afro, manifestação identitária que reafirma a importância das discussões raciais em um país extremamente racista.

Enquanto este texto é escrito, acompanhamos a instalação de uma Frente Parlamentar Mista em defesa das escolas cívico-militares, de autoria do deputado Luciano Zucco, do Republicanos (RS). Aparentemente, não é só Vicente Dutra que continua a investir em um modelo de gestão escolar duramente criticado por especialistas em educação. O evento responsável por marcar o início dos trabalhos da frente contou com a presença do ex-presidente Bolsonaro, cujas ideologias durante seu mandato afirmavam que as escolas públicas faziam uso da “doutrinação de Paulo Freire”, como já demonstramos na seção de abertura da reportagem “Quem não marchar direito”.

Em suma, é preciso questionar se com a implementação dos valores militares, voltados à segurança, ordem e nacionalismo na Escola Cívico-Militar Érico Veríssimo, e demais escolas que se adequam a esse sistema, não estariam eles próprios se encarcerando. Como na música da banda O Rappa, “as grades são pra te trazer proteção [...] Mas também trazem a dúvida se é você que tá nessa prisão”. Nesse caso, a prisão pode ser o regresso aos ideais que deveriam ficar onde estavam, ou seja, no passado. Nas palavras da pesquisadora Catarina Santos, seria muito mais benéfico se a pedagogia das escolas públicas fosse para dentro dos quartéis, e não o contrário.

*escrito por JOÃO CARLOS NETO

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